De ataques a ativistas de direitos humanos a limitações ao trabalho da sociedade civil, enfrentamos uma emergência no espaço cívico. Segundo evidências do Monitor CIVICUS , as ameaças a liberdades civis não se restringem apenas a democracias frágeis e autocracias, ocorrendo também em democracias mais maduras. Embora exista uma preocupação crescente sobre como responder a esse fenômeno, acreditamos ser necessário uma maior atenção às suas causas fundamentais e ao apoio às respostas locais. O espaço civil não pode ser “salvo” de fora.
Muitas das restrições contemporâneas à sociedade civil são reações automáticas, às vezes preventivas, a mobilizações populares, um triste e inesperado resultado da esperança inicial da chamada Primavera Árabe. Evidentemente, esse padrão de causa e efeito não é a única causa importante do aumento das restrições às liberdades cívicas. A utilização do discurso da segurança global para inibir dissidências, líderes nacionalistas aplicando restrições ao financiamento internacional para a sociedade civil e a retirada de arranjos internacionais de direitos humanos a partir de argumentos frágeis de soberania de Estado são todos meios pelos quais o discurso dos direitos humanos vai sendo desfeito. Ainda que vários fatores conduzam a restrições dos espaços civis, pensamos que vale a pena prestar atenção a três deles em particular, devido a sua natureza transversal e impactos amplos.
1. O negócio da repressão à sociedade civil
O impacto das megacorporações e do fundamentalismo de mercado na fragilização de liberdades civis não deve ser subestimado. As influências do setor privado são particularmente claras na área da exploração de recursos naturais por indústrias extrativas e o grande agronegócio. Os defensores locais do meio ambiente, muitas vezes indígenas, enfrentam retaliações ao proteger os recursos naturais da exploração de negócios corruptos e interesses políticos. O assassinato da premiada ativista hondurenha Berta Cáceres e restrições ao direito de protesto pacífico dos opositores ao Oleoduto Dakota nos Estados Unidos são exemplos de como esses desafios transcendem as fronteiras globais Norte-Sul.
2. Uma combinação tóxica de ideologias extremistas
A sociedade civil também tem sido atacada de modo crescente por grupos extremistas que visam dividir sociedades a partir de interpretações excludentes de etnias ou religião. A ênfase da sociedade civil em diversidade e coesão social é acusada de ser oposta a valores nacionais ou culturais e, em certos casos, aqueles que se pronunciam contrários a tais projetos são rotulados de agir sob comando de interesses estrangeiros. Na Europa, por exemplo, os grupos da sociedade civil que trabalham com direitos das populações de refugiados e migrantes estão enfrentando uma reação violenta. Em muitas partes da Ásia ocidental, os defensores dos direitos das mulheres têm sido atacados por grupos armados que procuram impor às populações doutrinas religiosas puritanas, chamando a busca pela igualdade de gênero de uma invenção ocidental. No sul da Ásia, blogueiros e jornalistas tem sido perseguidos na internet e no mundo real por se manifestarem contra costumes culturais dominantes enquanto que na África, evangelistas têm se aliado a grupos em outros continentes para estimular a homofobia e os ataques a ativistas que promovem os direitos das pessoas LGBTI.
3. Retrocesso da democracia e do multilateralismo
Também enfrentamos uma crise moral nas lideranças do cenário internacional que leva a um retrocesso nos valores de direitos humanos universais e impacta negativamente a sociedade civil. A degradação das liberdades cívicas e o surgimento de políticas “neofascistas” na Europa e nos Estados Unidos tem encorajado regimes despóticos em países como Bahrein, Burundi, República Democrática do Congo, Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, e outros a atacar opositores para consolidar seu poder mediante a manipulação dos processos eleitorais e instituições estatais. Das Filipinas à Rússia, Turquia e Venezuela, há uma batalha em andamento para silenciar opositores, de modo que a repressão àqueles que falam a linguagem dos direitos humanos está se tornando regra, em vez de exceção.
Apesar desses desafios, é essencial posicionar as respostas locais no centro das estratégias para retomada do espaço civil. Com base em conversas com membros da sociedade civil sobre seus desafios atuais, identificamos três questões críticas que merecem pesquisas aprofundadas:
1. Recursos para a resiliência de organizações locais
Numa época de vínculos crescentes entre organizações da sociedade civil voltadas para os direitos (OSCs) e a comunidade filantrópica/de doadores, o financiamento tornou-se uma área importante de contestação. Apenas uma pequena proporção da ajuda ao desenvolvimento vai realmente direto para a sociedade civil no Sul Global. As prioridades instáveis dos doadores e a deferência excessiva aos caprichos governamentais criaram uma situação em que várias organizações menores estão fechando enquanto as maiores, mais versadas em marketing e preparadas para atender aos sofisticados requisitos contábeis dos doadores, estão expandindo. O panorama da sociedade civil organizada começa a se assemelhar ao mercado com grandes franquias que expulsam empresas de propriedade local e enraizadas no lugar. Por exemplo, uma organização administrada por refugiados sírios na Turquia diz ter experimentado dificuldades em obter financiamento internacional, apesar de ter um conhecimento local muito mais relevante do que as organizações internacionais que atraem doadores globais. Os doadores internacionais precisam ter consciência de que sua burocracia exclui as organizações comunitárias que possuem expertise local e têm despesas gerais significativamente mais baixas.
2. Ir além da accounts-ability
Em todo o mundo, a legitimidade de muitas organizações da sociedade civil está sendo questionadas em várias frentes, de políticos que as demonizam, acusando-as de serem grupos de interesses especiais desconectados da realidade, a movimentos sociais que consideram que as OSCs tradicionais são, na melhor das hipóteses, obscuras e, na pior, cooptadas. As formas usuais com que as OSCs demonstram sua accountability – mediante o cumprimento de requisitos regulatórios e entrega de relatórios aos doadores - tem se mostrado insuficientes para convencer políticos ou públicos céticos. Precisamos ir além da “accounts-ability” (accountability puramente contábil) para aprimorar a transparência e o diálogo com comunidades - não como gesto simbólico, mas porque elas são fundamentais para realizar mudanças significativas. Isso poderia incluir coisas como a tomada de decisões centradas nas pessoas, a adaptação em tempo real às necessidades dos interessados e a criação da próxima geração de promotores de mudanças sociais. Essa forma de accountability não diz respeito apenas a relatórios financeiros e transparência para os doadores, mas ao diálogo significativo com as comunidades afetadas e partes interessadas, e a ficar de olho nos resultados mais amplos para orientar o processo de tomada de decisão organizacional.
3. Manter-se unidos
É necessária uma resposta enérgica, global, liderada pela sociedade civil para combater os ataques às liberdades civis. Muitos de nós fazemos um bom trabalho para garantir que a realidade do fechamento do espaço civil apareça no radar da comunidade internacional, mas os esforços para lutar contra as restrições são muitas vezes duplicados e descoordenados. Devemos deixar claro que a capacitação dos direitos da sociedade civil é parte essencial da defesa da democracia. Para tanto, precisamos fazer alianças progressistas, reunir massas substanciais de cidadãos e conectar OSCs clássicas, movimentos de protesto, jornalistas, sindicatos, grupos juvenis, empresas sociais, plataformas artísticas e muitas outras partes do universo da sociedade civil.
Um espaço civil robusto só pode existir dentro de uma democracia em funcionamento e, portanto, salvaguardar a sociedade civil também envolve re-imaginar modelos de democracia mais participativos, com as pessoas em seu centro. Visto dessa forma, o desafio mais abrangente não é o técnico, de curto prazo, de repelir os ataques ao espaço civil, mas um desafio político de longo prazo de re-imaginar um cenário mais participativo, onde a democracia substantiva prospere.
***Esse artigo corresponde a um excerto de um artigo publicado na 26ª edição da SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos.