Atualmente os sistemas prisionais da América Latina enfrentam uma crise regional. As rebeliões nas prisões já causaram centenas de mortes no Brasil, México e Guatemala, e as autoridades têm -se demonstrado incapazes em conter disputas entre facções rivais. Além disso, questões de longa data relacionadas à perfis raciais, atrasos na sentença e programas inadequados de reintegração social também são inúmeras e expressivas, o que apenas exacerba a violência.
Hoje, o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, com 682.901 presos. De acordo com o Ministério da Justiça do país, 64% dessa população são negros, 28% são presos por crimes ligados ao tráfico de drogas e 40% são presos provisórios que ainda não foram sequer condenados ou julgados. Em um sistema com capacidade oficial de 408.116 presos, a percentagem de prisões ocupadas no Brasil é de 165,4%, número esse em crescimento contínuo e vertiginoso.
Atrasos rotineiros e extramente longos na elaboração da sentença estão agravando o problema. Em 2017, um relatório do Conselho Nacional de Justiça afirmou que os condenados aguardam de um a sete anos em prisão preventiva. O Brasil tem uma política antidrogas (Lei 11.343 / 2006) que, teoricamente, deveria acabar com o tempo de prisão para os usuários de drogas, abordando o uso como um problema de saúde e não como crime. Infelizmente, a falta de critérios claros entre o uso e o tráfico de drogas, combinada com acesso insuficiente à saúde, geram incerteza jurídica e padronização social, além da contínua prisão dos dependentes químicos.
Em outras palavras, quando se trata de pessoa branca e de classe média, essa provavelmente será considerada usuária e não irá para a cadeia, já no caso de uma pessoa negra e pobre muito provavelmente seu final será a prisão preventiva.
De acordo com o Instituto Igarapé, em 2016 quase um terço dos detentos brasileiros estavam presos devido ao tráfico de drogas – contudo ainda não se tem claro quantos deles são apenas usuários e quantos são traficantes - e esse número continua crescendo exponencialmente.
Em meio a essas estatísticas sombrias, existem organizações tentando mudar o sistema, especialmente no que tange à reintegração. Como exemplo, podemos citar a APAC (Associação para Proteção e Assistência a Reclusos) que começou há 43 anos em São Paulo, Brasil.
Seu programa é baseado na seleção de alguns prisioneiros do sistema regular, escolhendo aqueles que não estão relacionados a nenhum grupo criminoso e que possuem suas sentenças reduzidas devido ao bom comportamento. Ademais, para que possam se habilitar ao projeto, os prisioneiros devem se comprometer com os valores cristãos da instituição. Com a filosofia de “matar o criminoso e salvar o homem”, a APAC oferece também cursos vocacionais e religiosos. O programa também trabalha com mais de 40 presídios, sem a presença policial e / ou armas e recebe apoio do governo de Minas Gerais, da Comissão Europeia, da FIAT e outros.
No entanto, mesmo essas tentativas progressivas de melhorar a reintegração social não conseguem "humanizar" um sistema inerentemente desumano. O sistema prisional continua a manter uma estrutura duradoura, desigual e preconceituosa. Por exemplo, após a abolição da escravidão no Brasil em 1888, negros, indígenas e imigrantes ainda eram marginalizados por um novo Código Penal que os visava e controlava, classificando-os como perigosos. Este sistema de discriminação persiste até hoje.
Embora não haja dúvidas de que alternativas como o programa da APAC são melhores do que o sistema carcerário atual do Brasil, os defensores dessa mudança precisam enfrentar melhor as raízes da crise da prisão. O problema não é apenas o tratamento que os prisioneiros recebem, mas também quem são os que acabam na prisão.
Inspirações para as alternativas carcerárias que chegam à raiz do problema podem ser encontradas no movimento abolicionista prisional que, coincidentemente, ganhou forças ao mesmo tempo em que surgia a APAC. Esse movimento foi desencadeado após o início da Guerra Contra as Drogas - que explodiu a população carcerária americana de 40.000 em 1980 a 500.000 em 2009, sob a acusação de narcotráfico. O objetivo dos abolicionistas era reformar o sistema de justiça criminal e oferecer alternativas ao encarceramento, uma vez que muitas pessoas estavam (e ainda estão) presas porque eram pobres demais para pagar por assessoria jurídica.
Hoje, até mesmo a ONU concorda com essa abordagem e emitiu relatórios sobre o encarceramento como último recurso, oferecendo alternativas como: serviço comunitário, relatórios de liberdade condicional elaborados pelo setor de Serviços Sociais, descriminalização de drogas e mediação. Isso porque, a verdadeira reinvenção do sistema requer mudanças sociais, educacionais, ambientais e na saúde para que então necessidades tangíveis possam ser alcançadas. Nesse sentido, a estratégia abolicionista é um sistema de justiça baseado na reparação e reconciliação, e não na retribuição e vingança.
Angela Davis, ativista política americana, diz: “O encarceramento está associado à racialização dos que têm maior probabilidade de serem punidos”. Mudar essa realidade deve ser o objetivo da reforma da prisão. Atualmente, nada nas prisões brasileiras ajuda o indivíduo a se reintegrar à sociedade. Mesmo programas educacionais e vocacionais dentro deste sistema não podem superar o estigma que os ex-condenados enfrentam. De fato, a maioria dos presos deixa cadeia com menos oportunidades do que antes, e as taxas de reincidência no Brasil são extremamente altas, embora os dados exatos sejam escassos.
O novo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, diz que mudar o sistema prisional é sua prioridade; no entanto, essa “reforma” promete ser mais dura contra a criminalidade e provavelmente colocará ainda mais pessoas pobres na prisão. Seu novo programa para o sistema penal inclui: acesso ao porte de armas pela população; excludente de ilicitude para quem mata em defesa própria (especialmente a polícia); diminuição da maioridade penal de 18 para 16 anos; acabar com a progressão penal; tipificar como terrorismo invasões à propriedades rurais e urbanas, fazendo referência a grupos políticos, como o Movimento Sem Terra (MST) e Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) ; e aumentar as penas para crimes de estupro, incluindo a castração química voluntária em troca da redução de sentenças.
Em outras palavras, o novo presidente pretende reformar e endurecer o sistema prisional, seguindo na direção totalmente oposta ao trabalho da APAC e aos objetivos abolicionistas da prisão como último recurso.
Ao contrário disso, o que os sistemas prisionais relamente precisam, não só no Brasil mas no mundo, é abordar as reais raízes do problema prisional. Alternativas baseadas nesse tipo de filosofia visam remover a prisão - assim que possível - da paisagem social e ideológica de nossa sociedade.
A criação de instituições como centros de tratamento da dependência, programas salariais para trabalho e vida, como os de Jaipur, na Índia, e o uso de mediação na resolução de casos são alguns exemplos dessas alternativas. Como exemplo brasileiro podemos citar o projeto chamado Vozes e Olhares, em que a participação ativa da comunidade e da família ajudou a reduzir a reincidência criminal. Tal projeto amplia o acesso à educação e oferece apoio psicológico, com o objetivo de abordar questões fundamentais que levam ao envolvimento com o crime. Além disso, o projeto cria círculos comunitários com professores, assistentes sociais, psicólogos, policiais e outros membros da comunidade, com o objetivo principal de fortalecer os laços comunitários e criar diferentes formas de resolução de conflitos e restituição.
Como Ruth Wilson Gilmore, ativista abolicionista americana, diz: “A experiência é importante, mas a consciênciatização é o que importa”. E é isso que a reforma prisional precisa fazer: conscientizar sobre a falta de humanidade do sistema prisional, encontrar o maior número possível de alternativas ao encarceramento e vincular os direitos humanos e o desenvolvimento à reforma das prisões.