A ansiedade da sobrevivência é o sentimento dominante em uma pandemia. Como indivíduos, perguntamos se vamos permanecer vivos e saudáveis. Como comunidade política, indagamos se e como vamos permanecer livres e democráticos. Nos dois níveis, também ponderamos o quanto nossas condições materiais serão afetadas e se o sofrimento dos mais vulneráveis pode ser aliviado.
Esse clima de medo deveria ser uma tempestade perfeita para um líder autocrático que anseia por uma janela de oportunidade para aumentar seus poderes e minar as demais instituições de defesa. Ou mesmo para as próprias democracias aumentarem e perpetuarem poderes discricionários do Estado de controle de liberdades civis básicas em troca de segurança.
Democracias constitucionais experimentam essa ansiedade em vários graus. O Brasil sob o governo de Bolsonaro a enfrenta num nível sem precedentes. Zombando da magnitude da doença e investindo em campanhas de desinformação ou estimulando o estresse institucional e social, o presidente brasileiro assegurou o pior cenário de saúde pública. Porém, as consequências políticas de tais ações, tanto para a democracia quanto para o próprio presidente Bolsonaro, permanecem abertas.
Apesar de sua personalidade grosseira, estilo de governo ideologicamente agressivo e repertório multifacetado de legalidade autoritária, a eleição de Bolsonaro não foi inicialmente percebida como uma ameaça democrática por grande parte dos principais atores políticos. Nos círculos de elite, a ideia de que as instituições brasileiras estavam trabalhando bem o suficiente para conter qualquer um dos impulsos autoritários do presidente tornou-se argumento defensável.
Enquanto alguns adotaram slogan de negacioniamo política - alegando que a eleição de Bolsonaro apresentava "risco zero" para a democracia brasileira - relatórios de pesquisas globais sobre democracia já mostram o Brasil como uma das principais nações autocratizantes.
Durante o último ano e meio, qualquer avaliação geral de desempenho do Brasil deve ser dividida em dois períodos: a pré-pandemia e a pós-pandemia. Isso não se deve ao fato universal de que os países tiveram que adotar alguma forma jurídica de emergência (constitucional, legislativa ou de tipo híbrido) desde o início da pandemia. Deve-se à dinâmica política provocada pelo modo de Bolsonaro governar.
Considerado por alguns como o pior líder mundial no enfrentamento da pandemia, Bolsonaro pode estar cavando sua própria cova.
A produção constante de crises políticas pelo governo, por exemplo, ganhou ainda maior intensidade no período pós-pandemia. A estratégia de se instalar um governo autoritário em ritmo gradual, tal qual Orbán, na Hungria, sofreu um abalo. A nova conjuntura mudou a estrutura de oportunidades para concentração de poder. Em vez de enfraquecer instituições de controle, peça por peça, como manda a cartilha do autocrata contemporâneo, o contexto da pandemia galvanizou conflitos políticos mais extremos. O exemplo mais clamoroso são as ameaças de intervenção militar, insinuadas por ministros e apoiadores políticos relevantes, por meio de uma interpretação enganosa do artigo 142 da Constituição Federal brasileira (que prevê os princípios gerais das Forças Armadas).
Durante o primeiro ano, o governo desenvolveu uma forma tripartida de legalidade autoritária. Primeiro, pela superprodução de medidas provisórias ou decretos que violaram abertamente regras da legislação (como a que procurava liberar armas contra a proibição legislativa). O judiciário e o parlamento foram desafiados a controlar a extraordinária quantidade de medidas executivas, que geraram fadiga da legalidade e estresse institucional. Tendo derrotado o governo em alguns casos importantes, as instituições judiciais e legislativas não conseguiram lidar com todos eles. Segundo, o governo esvaziou instituições de controle e fiscalização na arquitetura do poder executivo (como órgãos ambientais que controlam o desmatamento na Amazônia). Terceiro, permitiu e estimulou violação contínua de direitos constitucionais e do ethos democrático (demonstrando simpatia, por exemplo, a campanhas de ódio e estigmatizando grupos minoritários como comunidades indígenas e ativistas sociais identificados com a esquerda).
Quando a pandemia foi anunciada pela Organização Mundial da Saúde, segmentos do governo brasileiro foram rápidos em agir. O ministro da saúde declarou emergência de saúde no início de fevereiro. Alguns dias depois, o Congresso aprovou legislação que regulava a quarentena. Normas complementares foram adotadas por cada um dos estados da federação nas semanas seguintes. O Congresso produziu legislação adicional que tratou de finanças públicas a contratos, de leis trabalhistas à garantia de renda básica para famílias pobres. O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, concentrou quase toda sua agenda em temas relacionados à pandemia.
O próprio presidente não tentou recorrer a nenhum dispositivo de emergência da Constituição brasileira que pudesse aumentar os poderes do executivo. Em vez de exagerar na concentração de poder para enfrentar as pandemias, Bolsonaro seguiu o caminho da negação aberta e desdenhosa sobre a seriedade do COVID-19. Também criticou autoridades públicas por adotar medidas de quarentena (o ministro da saúde, governadores de estado etc.) e incentivou protestos contra elas.
Essa tensão aberta politizou a pandemia e provocou conflitos interinstitucionais. Horizontalmente, o conflito ocorre entre o Executivo, de um lado, e o Congresso e o Supremo Tribunal, de outro. Verticalmente, entre o governo federal e os governos estaduais. Estruturalmente, o conflito também se dá entre o próprio governo e a tecnocracia estatal.
Em vez de exagerar na concentração de poder para enfrentar as pandemias, Bolsonaro seguiu o caminho da negação aberta e desdenhosa sobre a seriedade do COVID-19.
A politização da crise gera conseqüências para o gerenciamento da política pública e o comportamento social. A geografia da taxa de contaminação e mortalidade está correlacionada não apenas com fatores socioeconômicos de um país profundamente desigual, mas com a localização dos eleitores no espectro político. A reação presidencial ruidosa foi, na verdade, uma sub-reação à crise de saúde pública.
Essa sub-reação não se deve somente à falta de respeito de Bolsonaro por ciência e pesquisa, mas à tentativa de se eximir de qualquer responsabilidade. Bolsonaro afirmou repetidamente que governadores e o STF são responsáveis pelas medidas impopulares e não permitem que as pessoas “voltem à normalidade”. Considerado por alguns como o pior líder mundial no enfrentamento da pandemia, Bolsonaro pode estar cavando sua própria cova.
Além dos danos decorrentes do comportamento negacionista, que levou várias entidades a apresentar queixas contra o presidente perante a CIDH, a ONU e a OEA, sem mencionar o próprio STF, o debate público sobre restrições de direitos promovidas por políticas de quarentena tem sido ofuscado pela turbulência política ininterrupta. O sentimento de ruptura institucional iminente domina a esfera pública e faz com que a pandemia passe como questão secundária.
Juristas e politólogos de todo o mundo levantaram preocupações sobre a ausência de justificativa constitucional para severas restrições de direitos e liberdades civis. A disposição de acomodar e aceitar limitações extraordinárias não deve deixar de lado a necessidade de definir prazo determinado de duração dessas medidas, e respeitr critérios de proporcionalidade e de não-discriminação. O Brasil, no entanto, permanece um passo atrás e luta para que a crise seja levada a sério.
A sociedade brasileira, apesar de ter adotado, num estágio inicial, política razoável de quarentena e de sinalizar a capacidade de achatar a curva de contaminação, relaxou esse compromisso ao longo das semanas devido às turbulências presidenciais e minou as perspectivas de políticas públicas racionais e coordenadas.
À medida que a popularidade estável do presidente, de cerca de 30%, dá algum sinal de declínio, a oposição lida com um dilema. Remover um presidente no meio de uma emergência sanitária tão grave (seja através de processos de impeachment, julgamento criminal ou julgamento eleitoral) é um ato quase impensável numa democracia. Ato de tamanha magnitude numa conjuntura tão desfavorável viola qualquer senso comum de prudência política. No entanto, o país pode estar começando a perceber que ser governado por um presidente negacionista que se furta a assumir a responsabilidade de enfrentar as circunstâncias pode sair muito mais caro.
Uma pandemia pode ser a tempestade perfeita para um autocrata. A negação da pandemia pode vir a ser o erro fatal de Bolsonaro.