No primeiro dia de sua presidência, Jair Bolsonaro, o novo líder brasileiro de extrema direita, assinou diversas medidas provisórias atacando minorias, incluindo uma que removeu a população LGBTQ da supervisão do novo ministério de direitos humanos. Essa atitude não surpreendeu, considerando as declarações dados no passado por Bolsonaro, que declarou-se um “homofóbico, com muito orgulho”, argumentando que nunca seria capaz de amar um filho gay (“Prefiro que um filho meu morra num acidente”). Há muito tempo que suas tendências autoritárias abrangem violência contra grupos marginalizados e suas recente decisões deixa os cidadãos LGBTQ brasileiros temendo por sua sobrevivência.
As consequências das últimas eleições no Brasil para a população LGBTQ podem ainda não ser integralmente conhecidas, mas é possível buscar pistas em outros lugares da região. Na verdade, Bolsonaro não deve ser encarado como um caso isolado de ódio, mas parte de uma onda maior que se opõe às minorias sexuais e de gênero que varre as Américas – incluindo os Estados Unidos – e que é acompanhada do crescimento do poder político dos evangélicos.
O número de igrejas evangélicas tem crescido de forma consistente na última década, abarcando aproximadamente 20% da população em uma América Latina que já foi majoritariamente católica. O fortalecimento de evangélicos fundamentalistas, em uma coalizão com membros de seitas católicas ultraconservadoras como a Opus Dei, compõe um novo populismo que alinha partidos de direita e centro-direita às visões homofóbicas e patriarcais desses fundamentalistas religiosos.
Um dos resultados mais problemáticos desse casamento político é o ressurgimento de um conceito fabricado de “gênero biológico”. Esse termo falacioso remonta à oposição empreendida pelo Vaticano aos esforços internacionais de expandir os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres nos anos 1990. Nos últimos anos, o conceito foi apropriado por opositores dos direitos LGBTQ para distorcer argumentos sobre orientação sexual e de identidade de gênero, como se esses consistissem em um esforço para impor uma “ideologia” que busca subverter papeis tradicionais de gênero e destruir a família. Na América Latina, ativistas conservadores têm usado essa linguagem para incitar o temor dos avanços dos direitos LGBTQ e mobilizar eleitores religiosos.
Até o momento, essa tem se mostrado uma estratégia altamente eficiente.
Em 2016, os colombianos rejeitaram por uma pequena margem um acordo de paz que buscou pôr fim a mais de 50 anos de conflito violento com as FARC, após opositores mobilizarem com êxito eleitores com o apoio de fundamentalistas católicos e evangélicos. Eles argumentaram que uma previsão do acordo de paz que reconhecia especificamente as mulheres e LGBTQ vítimas do conflito era um evidência de um complô para colocar fim a normas sociais tradicionais.
No Peru, o Ministro da Educação, Jaime Saavedra, foi acusado de promover a ideologia de gênero ao incluir na revisão do currículo escolar a discussão sobre igualdade de gênero. Mobilizações conservadoras contra políticas educacionais voltadas para reduzir a discriminação contra mulheres e pessoas LGBTQ também ocorreram no Equador, Panamá, Paraguai, Argentina e Colômbia. Na Costa Rica, o candidato presidencial Fabricio Alvarado, um pastor evangélico, fez sua campanha enfatizando explicitamente sua oposição ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ainda que ele tenha perdido a eleição, teve sucesso em usar a ideologia de gênero como uma arma para desbancar seus oponentes e ganhar a maioria dos votos no primeiro turno.
Em Cuba, onde um processo de reforma constitucional está atualmente em curso, termos que poderiam abrir caminho para o casamento entre pessoas do mesmo sexo foram retirados do projeto. A mudança foi ocasionada após uma mobilização pública massiva em oposição, encampada por ativistas que possuem ligações com grupos evangélicos nos Estados Unidos.
Até recentemente, a América Latina era celebrada como o palco de uma “revolução dos direitos gays”. Muito antes que a igualdade de casamento fosse lei nos Estados Unidos, vitórias legislativas em torno do casamento entre pessoas do mesmo sexo e dos direitos das pessoas trans na Argentina e Uruguai, além das decisões judiciais afirmando direitos LGBTQ na Colômbia, Brasil e México, pareciam apontar um avanço progressista incontestável na região.
Contudo, o tempo de celebrar vitórias passou. O avanço do poder político de grupos evangélicos e o uso da ideologia de gênero como um slogan por parte de fundamentalistas religiosos colocam uma ameaça iminente à vida de pessoas LGBTQ. Opositores têm aproveitado oportunidades políticas, como mudanças constitucionais, negociações de paz e eleições presidenciais, para mobilizar o público contra os direitos LGBTQ, desestabilizando a região ao enfraquecer as instituições democráticas e ao alimentar a corrupção política por meio de alianças com extremistas.
Além disso, uma retórica homofóbica, frequentemente oriunda dos mais altos escalões de governo, reforça o estigma anti-LGBTQ e promove violência contra essas comunidades já vulneráveis. O Grupo Gay da Bahia, um grupo de direitos humanos no Brasil, reporta que os casos de mortes violentas de pessoas LGBTQ no país atingiu um recorde de 445 vítimas em 2017, um aumento de 30% em comparação com o ano anterior. Na Colômbia - onde o Presidente Ivan Duque nomeou notórios homofóbicos como embaixadores em postos importantes na Organização dos Estados Americanos e na França - o número de pessoas LGBTQ assassinadas continua a crescer, com mais de 100 casos em 2017, de acordo com um relatório do grupo de direitos LGBTQ Colombia Diversa.
Em outras partes do hemisfério, esforços para atacar o progresso dos direitos LGBTQ estão a pleno vapor. No Chile, um projeto de lei permitindo o casamento de pessoas do mesmo sexo está parado no Congresso desde 2017 com a oposição pública do Presidente conservador Sebastián Piñera. Enquanto isso, nos Estados Unidos, o Presidente Donald Trump tem agido para limitar a proteção das pessoas LGBTQ em diversas áreas sob o pretexto de “liberdade religiosa”, indo do acesso a serviços de saúde, à segurança no acesso a banheiros das escolas. Ao mesmo tempo, ele também tem buscado banir o serviço militar de pessoas trans nas forças armadas.
Enquanto pessoas LGBTQ têm enfrentado ameaças e a diminuição de apoio doméstico, ativistas têm recorrido a instituições internacionais como recurso contra mais retrocessos. A Relatora Especial para os Direitos das Pessoas LGBTQ da Comissão Interamericana de Direitos Humanos monitora a situação na região por meio de audiências públicas e visitas aos países. Ademais, uma recomendação da Corte Interamericana de Direitos Humanos de janeiro de 2018 decidiu que os países membros devem estender a igualdade de casamento a casais do mesmo sexo e que a alteração de documentos de identificação nacionais de acordo com o gênero da pessoa é um direito protegido pela Convenção Americana de Direitos Humanos.
Contudo, esses acontecimentos não podem isoladamente conter a onda do sentimento anti-LGBTQ que continua a crescer. O progresso conseguido a duras penas por toda a América continua frágil. Este momento demanda um ação coordenada por parte de ativistas em toda a região, de modo a fortalecer as salvaguardas nos países e a capacidade de instituições internacionais de contrapor políticas que perpetuam a violência contra as pessoas LGBTQ. Isso requere que financiadores, acadêmicos, gestores públicos, empresários e ativistas defendam a democracia nas Américas, aprendendo com as experiências de movimentos sociais que os antecederam, tais como os grupos de direitos das mulheres, ao mesmo tempo que reconhecem os novos desafios colocados pelo crescimento generalizado do populismo autoritário e a emergência de uma rede de fundamentalistas religiosos. A ameaça é demasiadamente grande e as consequências graves demais para permanecer complacente ou indiferente.