Devido às restrições e medidas emergenciais da COVID-19, o Estado pode justificar mais facilmente as prisões arbitrárias de manifestantes e pessoas defensoras dos direitos humanos (pessoas DDH), aumentando assim o risco de criminalização. Também é muito mais fácil para os governos monitorar e rastrear seus movimentos online e offline, aumentando sua vulnerabilidade.
Com o vírus crescendo, as consequências da detenção arbitrária e da criminalização podem ser fatais, e é por isso que prevenir a perseguição injustificada de vozes dissidentes e defender a libertação de pessoas DDH presas nunca foi tão importante como atualmente.
Um aumento nas ferramentas digitais e um aumento nas ameaças digitais
Para quem tem acesso à internet, trazer discussões sobre violações de direitos humanos para o mundo online abriu canais de comunicação que antes estavam fechados. Algumas pessoas DDH podem se conectar mais facilmente a uma reunião do Conselho de Direitos Humanos ou falar em um evento da União Africana sem os encargos financeiros das viagens de longa distância. No entanto, muitas pessoas DDH, comunidades e organizações estão relatando que agora estão mais expostas a assédio, doxing, hackeamento e censura online. “Percebemos que cada vez mais pessoas DDH estão fazendo perguntas sobre segurança digital e mostram um bom nível de consciência das ameaças digitais devido ao aumento da exposição a elas”, observou um de nossos colegas da Protection International Mesoamérica.
Uma das organizações parceiras da Protection International no Brasil foi recentemente atacada com comentários violentos e racistas durante uma sessão ao vivo no Facebook e YouTube. Ataques pessoais online violentos são meios especialmente comuns de desmoralizar minorias, mulheres e pessoas LGBTI defensoras de direitos humanos, como evidenciado pelo caso de Rosa Luz, que foi forçada a fugir de São Paulo após receber várias ameaças de morte.
A privacidade continua a ser um luxo, disponível apenas para pessoas defensoras que podem pagar por isso.
Desde o início da pandemia, a equipe da Protection International experienciou vários incidentes de segurança digital, incluindo a restrição da Internet no Quênia, pelo menos quatro ocorrências de assédio online de participantes de reuniões virtuais não convidados e recorrentes tentativas de phishing em vários endereços de e-mail institucionais. “A pandemia acarretou um grande aumento nos ataques de phishing, bem como um aumento nos ataques a ferramentas e serviços que de repente todos precisavam usar, como o Zoom”, observou Claus Goettfert, administrador de TI da Protection International. “Algumas pessoas defensoras são visadas explicitamente e essas violações de dados e incidentes de segurança causam grandes impactos afetando também a nós e às nossas organizações parceiras ”.
As organizações parceiras da Protection International experienciaram pelo menos 20 incidentes de segurança digital desde o início da pandemia, sete dos quais afetaram o trabalho de nossa equipe na Indonésia. “A segurança digital é uma ameaça séria. Todos os meses, um dos sites de nossa organização parceira é hackeado, o que agora está acontecendo com mais frequência ”, observaram colegas da PI Indonésia. Em Yogyakarta, uma organização estudantil da Universidade Gajah Mada foi forçada a cancelar um debate online após receber ameaças de morte e ser acusada de traição. Em outro caso, Ravio Patra, um pesquisador indonésio crítico franco do governo, foi preso sob a falsa acusação de incitar motins através do WhatsApp.
Para proativamente combater os incidentes de segurança digital, a Protection International criou uma Força-Tarefa de Digitalização especificamente para monitorar incidentes digitais, bem como treinar funcionários para usar e propagar a utilização de plataformas que fornecem mais privacidade, incluindo ferramentas de comunicação seguras. Desde o início da pandemia até o presente momento, aproximadamente 80% dos parceiros da Protection International mudaram para canais de comunicação mais seguros, mas as restrições financeiras ainda estão impedindo muitas pessoas DDH de fazer o mesmo. Por exemplo, o WhatsApp pode ser incluído gratuitamente em certos planos telefônicos, enquanto o Signal, a opção de aplicativo de mensagens mais seguro, não. A privacidade continua a ser um luxo, disponível apenas para pessoas defensoras que podem pagar por isso.
Para aquelas pessoas DDH que não têm acesso à Internet, as respostas dos Estados às suas necessidades de proteção permanecem ainda mais insatisfatórias e desequilibradas. As equipes da Protection International passaram então a se comunicar por rádio e podcasts com as pessoas defensoras de direitos humanos rurais com os quais a organização havia estado em contato antes do início do surto da COVID-19.
Na Guatemala, a PI Mesoamérica transmitiu uma série de mensagens em espanhol e nas línguas maias de Mam, Q'eqchi e Q'anjob'al divulgando informações sobre as lutas relacionadas à questões psicossociais e de gênero que as pessoas defensoras de direitos humanos estão enfrentando durante a pandemia, bem como a importância de proteção preventiva. A intenção é reduzir a sensação de isolamento, tanto físico quanto psicológico, e levar informações tão necessárias a lugares de difícil acesso. É crucial que os governos concentrem seus esforços de proteção naquelas pessoas que estão mais marginalizadas e isoladas pelas restrições da COVID-19, especialmente aquelas que estão física e digitalmente desconectadas.
Descrição: Sessões de treinamento sobre construção da paz e o princípio de “não causar dano” na República Democrática do Congo. Fonte: Ephrem Chiruza
Prisioneiros/as políticos/as são expostos a uma nova forma de tortura
Os governos também são responsáveis pela proteção daqueles/as sob seus cuidados. A angústia de ser preso durante uma pandemia mortal não é apenas um castigo cruel, mas é também uma forma nova e incomum de incitar o medo e a autocensura. O risco elevado da COVID-19 se espalhar em espaços confinados e superlotados levou muitos governos a lançar programas de libertação temporária. Muitos deles, no entanto, excluíram a maioria dos/as presos/as que haviam sido encarcerados/as por seu ativismo, de acordo com a Front Line Defenders. Em vez de usar a pandemia como uma oportunidade para finalmente compensar a privação injusta de liberdade de dissidentes políticos e jornalistas, muitos governos continuaram a usar pessoas defensoras de direitos humanos para ameaçar a população tomando essas pessoas como exemplo do que pode acontecer àqueles/as que falam contra os regimes que se recusam a abrir mão de seu domínio.
Sr. Germain Rukuki, por exemplo, é um defensor de direitos humanos do Burundi que passou quase quatro anos na prisão por seu ativismo. Ele é o fundador da associação comunitária Njabutsa Tujane, que luta contra a pobreza e a fome, e melhora o acesso aos cuidados de saúde. O Sr. Rukuki foi preso pelo Serviço Nacional de Inteligência em 13 de julho de 2017 sob a acusação de "rebelião", "violação da segurança do Estado" e "ataque ao Chefe de Estado". Germain foi interrogado e mantido por 14 dias sem acesso a um advogado ou sua família. Depois de muitos meses de espera, o Sr. Rukuki foi condenado a 32 anos de prisão, embora nenhuma evidência conclusiva tenha sido apresentada. Trinta e dois anos é a pena mais dura que qualquer ativista já recebeu na história do Burundi. Felizmente, ele foi liberado recentemente.
A situação dos presos políticos no Burundi é terrível, especialmente considerando o fato de que o governo do Burundi tem demorado a impor medidas para conter a disseminação da COVID-19. Ficar preso/a em pequenas celas apertadas durante a pandemia sem dúvida causou severa angústia psicológica e emocional para pessoas defensoras de direitos humanos detidas arbitrariamente e também para suas famílias. No caso do Sr. Rukuki, surgiram relatos de um "vírus não identificado" varrendo seu local de detenção, a prisão de Ngozi, em junho de 2020. A situação é ainda mais preocupante considerando as condições crônicas de superlotação e saneamento precário nas prisões de Burundi. No ano passado, a Protection International apoiou campanhas de outras organizações para a libertação de pessoas defensoras de direitos humanos presas durante a COVID - incluindo a campanha #ForFreedom (Pela Liberdade) da FIDH e a campanha Write for Rights (Escreva por Direitos) da Anistia Internacional - bem como ampliou nossa própria campanha #StayWithDefenders (Apoie as Pessoas Defensoras) para chamar a atenção para o caso do Sr. Rukuki, mas o governo de Burundi não mostrou qualquer disposição em dar uma trégua. O Tribunal de Recursos do Burundi de Ntahangwa continuou a atrasar o anúncio de seu veredicto sobre se sua sentença de prisão seria ou não modificada, mais uma vez violando seu direito a um julgamento justo. Depois de esperar 62 dias após o prazo, foi anunciado que sua sentença seria reduzida de 32 anos para um. O Sr. Rukuki agora está livre e pode voltar para sua família.
“O veredicto estabelece um precedente importante para invalidar a criminalização das pessoas defensoras dos direitos humanos”, afirma Susan Muriungi, Diretora Regional da Protection International para a África. “A libertação de Germain envia um poderoso lembrete a todos as pessoas defensoras no Burundi e em todo o continente africano. Seu trabalho tem legitimidade. Seu trabalho tem valor. E você tem o direito de defender os direitos humanos.”
Descrição da foto: O ex-relator especial da ONU Michel Forst expressa sua solidariedade com as pessoas defensoras dos direitos humanos durante os tempos de COVID-19, participando da campanha #StayWithDefenders da PI
Não apenas devemos continuar a coordenar e defender melhor as pessoas DDH presas cujos direitos foram mais restringidos, como foi feito no caso do Sr. Rukuki, como também precisamos nos concentrar na proteção preventiva para garantir que as condições das pessoas defensoras tenham menos chances de se tornar tão graves - isso inclui trabalho de contra-vigilância e construção de redes online e offline. Os Estados precisam investir em políticas e mecanismos aprimorados para pessoas defensoras de direitos humanos que abordem a proteção de uma forma abrangente, sensível às questões de gênero e interseccional, permitindo o direito de protestar tanto no espaço digital quanto físico, sem temer uma acusação relacionada ao "protocolo de emergência". Os Estados deveriam investir nos cidadãos que trabalham para construir uma versão melhor de seu país, em vez de vigiá-los, detê-los e colocá-los atrás das grades.