Para implementar os direitos humanos de forma integral, precisamos colocar mais ênfase na responsabilidade de todos os atores, e não apenas dos Estados, de agir em conjunto para garantir que os direitos sejam desfrutados. Este argumento do meu recém-publicado livro: “A face oculta dos direitos: em direção a uma política de responsabilidade” (na tradução livre ao português do título original “The Hidden Face of Rights: Toward a Politics of Responsibility”), acaba sendo particularmente relevante para a pandemia de coronavírus. Ainda que todos os governos estivessem tomando medidas eficientes, se os indivíduos também não fizessem sua parte ficando em casa e lavando as mãos, não achataria a curva.
No livro “A face oculta dos direitos”, com base na obra de Iris Marion Young em seu livro póstumo “Responsabilidade pela justiça” (na tradução livre do título original “Responsability for Justice”), defendo que todos os atores socialmente conectados à injustiça estrutural e capazes de agir precisam atuar para lidar com a injustiça. Um problema com a palavra responsabilidade é que as pessoas costumam usá-la segundo o significado jurídico comum, focado em quem é o culpado ou responsável. Isso é o que Iris Young denominou responsabilidade retrospectiva ou “modelo de responsabilidade”. Ela se concentrou na responsabilidade política que é prospectiva. Este tipo de responsabilidade não pergunta “quem é o culpado”, mas “o que devemos fazer?”. É necessária uma responsabilidade prospectiva para resolver a pandemia do coronavírus e pensar no que devemos fazer no mundo após a pandemia. Também utilizo a ideia de Max Weber de uma ética de responsabilidade na obra A política como vocação para enfatizar que não é suficiente agir com boas intenções. Além disso, precisamos ter realizado a nossa pesquisa sobre a maneira mais eficaz de agir para que nossas ações tenham o impacto que buscamos.
Ainda que todos os governos estivessem tomando medidas eficientes, se os indivíduos também não fizessem sua parte ficando em casa e lavando as mãos, não achataria a curva.
Esse panorama é útil no contexto da crise do coronavírus porque envolve uma série de direitos e responsabilidades de diversos atores. Estão em jogo o nosso direito à saúde, mas também os direitos à liberdade; à liberdade de movimento; à educação; à informação; à alimentação; e de abrigo. Uma vez que os países intensificam políticas de viagens e fronteiras excludentes, alguns desses direitos podem estar ameaçados, e os governos precisam encontrar um equilíbrio entre proteger a saúde e respeitar os direitos humanos, como reconheceu o Secretário Geral da Organização Mundial da Saúde em seu briefing de 12 de março. A quarentena é uma política estatal legítima em períodos de emergência sanitária, mas o Estado deve atender os direitos dos indivíduos em quarentena à assistência médica, à alimentação e de abrigo adequados.
Essa conciliação entre os direitos está prevista na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que fala em limitar os direitos para “respeitar os direitos e liberdades de terceiros”. A DUDH vai ainda além, e reconhece que cada um de nós tem “deveres em relação à comunidade”, e seu preâmbulo exorta todos nós a promover direitos. Os redatores estavam ávidos por destacar que efetivar todo o potencial da DUDH era um esforço coletivo.
Para que todos possam usufruir desses direitos, todos os atores socialmente conectados a esse problema e capazes de agir devem exercer responsabilidades que nem sempre são bem definidas. Para proteger nosso direito coletivo à saúde, podemos precisar reconhecer que temos direito à liberdade de movimento, mas também a responsabilidade de não se deslocar em determinadas circunstâncias; direito à educação, mas responsabilidade de aceitar que ele possa ser suspenso temporariamente ou efetivado on-line.
Os organismos internacionais de governança em saúde podem fornecer um roteiro para implementar o direito humano à saúde. As organizações internacionais, especialmente a OMS, parecem ter assumido essa responsabilidade de forma notável nas últimas semanas. Recomendo a quem quiser estar bem informado, de maneira a evitar o pânico e promover ações, que dedique algum tempo à seção sobre o coronavírus no site da OMS.
Para que todos possam usufruir desses direitos, todos os atores socialmente conectados a esse problema e capazes de agir devem exercer responsabilidades que nem sempre são bem definidas.
Alguns Estados estão desempenhando um trabalho bem melhor no exercício da responsabilidade do que outros. O caso dos EUA é especialmente preocupante, onde a atuação dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (“Centers for Disease Control and Prevention” - CDC, na denominação original em inglês) foi prejudicada pelos instintos políticos iniciais do governo Trump para minimizar o problema. Nesse contexto, uma das responsabilidades sobre a qual dedico capítulos no meu livro - a responsabilidade de votar - se torna ainda mais importante. Os perigos desse líder nacionalista narcisista hostil à ciência e aos fatos não poderiam ser mais aparentes do que no caso de uma crise internacional real, quando uma liderança fraca nos EUA é literalmente uma questão de vida ou morte.
Mas as responsabilidades não se limitam aos governos nacionais, elas também existem para os governos estaduais e municipais, instituições de saúde, mídia, organizações sem fins lucrativos, universidades e até para os indivíduos. No âmbito individual, nossas responsabilidades diante da crise do COVID-19 incluem a incumbência de lavar as mãos, ficar em casa, cobrir a boca e o nariz ao tossir ou espirrar, mas também estar informados e não entrar em pânico. Quem pensaria que o desenvolvimento de novas normas sobre lavar as mãos se tornaria uma questão de governança internacional? As responsabilidades individuais podem incluir algumas renúncias, como não acumular bens básicos. Por exemplo, a maioria das pessoas não precisa de máscaras faciais e deve deixá-las para aqueles que estão doentes ou que cuidam de pessoas doentes. Mas o mais importante é que os indivíduos não exercem suas responsabilidades de maneira isolada, mas em coordenação com as instituições e em conexão social com os outros, mesmo quando adotamos a “distância social” (dois metros) necessária para limitar a transmissão da doença.
É uma constatação persistente, mas um tanto preocupante, da teoria das relações internacionais, que a mudança de ideias e instituições é mais provável de ocorrer por conta de crises. Essa crise já está gerando uma resposta nacionalista. Os EUA, por exemplo, estão adotando políticas unilateralmente e sem qualquer consulta. Mas uma abordagem prospectiva sobre direitos e responsabilidades sugere que precisamos de respostas nacionais e internacionais melhor coordenadas. É necessária mais e melhor governança internacional para solucionar a crise do COVID-19 e a recessão econômica que dela pode surgir. Nossa maior responsabilidade pode ser descobrir como converter essa crise em um passo adiante em direção à governança internacional, ao invés de dar um passo atrás perante a mesma.