Enquanto a pandemia do novo coronavírus continua se espalhando e afetando de forma brutal as periferias e os grupos mais vulneráveis de nossas sociedades, o papel do Estado está em debate. Muitas vozes símbolo do neoliberalismo estão expressando mudanças em suas visões, e há uma nova abertura para a defesa dos direitos humanos - especialmente econômicos, sociais, culturais, e ambientais - e seu financiamento.
A COVID-19 expôs o que a sociedade civil já vinha dizendo havia décadas: não há paz sem justiça e não há justiça sem que as desigualdades estruturais sejam tratadas. Nos EUA, os protestos estão pressionando para que se desfinanciem as polícias a fim de desmantelar um modelo e um sistema de policiamento que oprime negros, indígenas e não brancos naquele país.
O que esse pedido por desfinanciamento das polícias ilustra é que as decisões orçamentárias são sempre políticas, e que os orçamentos expressam diretrizes para a ação e que são ferramentas cruciais para que a sociedade civil exercite, de maneira apropriada e informada, o controle social sobre o governo.
No momento em que os prefeitos nos EUA entregam suas propostas para o orçamento discricionário do próximo ano fiscal, manifestantes viram as alocações que estavam sendo feitas para as polícias e decidiram se opor. Em Los Angeles, por exemplo, o prefeito Eric Garcetti apresentou um plano que previa o aumento de 7.1% para o financiamento do Departamento de Polícia de Los Angeles, o conhecido LAPD, ao mesmo tempo em que retirava recursos de áreas importantes de políticas sociais, como moradia que perderia 9.4% do seu orçamento atual e as políticas de criação de empregos, que perderiam 8.9% dos recursos alocados para esse ano fiscal.
Isso mostra que a retórica que defende direitos, embora seja poderosa e importante de ser usada por lideranças políticas, não necessariamente atende às necessidades da população e são os grupos afetados quem deve ter a oportunidade de participar das decisões que atendem suas demandas. Se não houvesse questionamento, 54% do fundo geral irrestrito da prefeitura de Los Angeles seria destinado ao LAPD. A pressão dos movimentos sociais assegurou uma vitória com o anúncio, pelas autoridades locais, de que o orçamento da polícia sofreria uma redução de US$150 milhões. Embora mesmo com esse novo corte, a polícia permaneça recebendo mais da metade dos recursos do fundo geral em uma época em que o cuidado (na forma de políticas sociais adequadas) é a prioridade de quem precisa, e não segurança - ao menos, não a liderada pelas polícias.
Não há nada que nos impeça de alcançar propostas orçamentárias que respondam de forma integral às opressões presentes
No Brasil, a transmissão pelo coronavírus segue acelerada e a falta de respostas adequadas por parte do governo está trazendo consequências devastadoras, levando o país ao aumento exponencial do número de mortes diárias, em uma curva que não mostra sinais de estabilização. E se a disponibilidade de recursos é fundamental para planejar respostas adequadas a uma crise de saúde pública, o orçamento brasileiro mostra exatamente onde as prioridades estão colocadas. Uma pista: o Estado brasileiro não planeja responder às necessidades dos grupos mais vulneráveis: residentes de periferias, mulheres, indígenas, quilombolas, crianças e adolescentes e pessoas com deficiências.
O país não somente planejou os recursos financeiros para 2020 de forma que a luta efetiva pelo controle da pandemia fica impossibilitada, como a análise de 2019 mostra que a imunidade do Brasil já estava comprometida em razão dos cortes de gastos. Os arranjos feitos para o ano fiscal atual (janeiro a dezembro de 2020) retiraram recursos que garantiam direitos humanos onde eram mais necessários: no fortalecimento do SUS, na melhoria no saneamento básico e políticas urbanas satisfatórias para atender os mais de 40% da população que vive em assentamentos precários e garantindo renda ou serviços de emergência para quem precisa.
Desde o início da década de 1990, o Inesc tem trabalhado com orçamentos como forma de analisar as políticas públicas e a promoção de direitos humanos. Baseada na metodologia própria desenvolvida e refinada desde 2004, o Balanço do Orçamento Geral da União 2019 deixa claro que o Brasil não estava preparado para enfrentar a COVID-19, mas também como havia fragilizado suas estruturas em favor de interesses de pequenos grupos econômicos alinhados com o presidente Jair Bolsonaro.
Por exemplo, em 2019 o orçamento para a saúde (R$138.4 bilhões) foi praticamente o mesmo de 2018 em termos reais (um acréscimo de meros 0.2%), e que levava o mesmo patamar de recursos de 2014, embora a população brasileira tenha aumentado em 7 milhões nesse período. Além disso, antes de 2019, o sistema universal de saúde pública (Sistema Único de Saúde (SUS) era financiado com um montante fixo calculado e transferido aos municípios com base na população de cada cidade. A partir de 2020, o sistema será financiado com base de número de usuários, o que reduzirá sua capacidade de planejamento e na prática impede o desenvolvimento de políticas de saúde básica que sejam universais. Isso provavelmente terá fortes consequências para os governos locais e sua capacidade de responder aos impactos da pandemia.
Se a disponibilidade de recursos é fundamental para planejar respostas adequadas a uma crise de saúde pública, o orçamento brasileiro mostra exatamente onde as prioridades estão colocadas.
Enquanto a ONU discute o progresso da implementação da Agenda 2030 no Fórum Político de Alto Nível, a análise do orçamento de 2019 mostra como o Brasil está despreparado para alcançar os objetivos da Agenda e distante de cumprir com seus compromissos internacionais.
A mesma tendência pode ser observada no Brasil em todas as áreas de políticas sociais: o orçamento de 2020 reduz o montante de recursos disponíveis se comparado a 2019 - quando já eram insuficientes, e portanto, reduz a capacidade das cidades, estados e do próprio governo federal em financiar respostas universais. Em nome de equilibrar as contas públicas, mais direitos foram sacrificados com contingenciamentos no orçamento que chegaram a R$31.225 bilhões.
Esse cenário é resultado de uma espiral de más decisões na implementação de medidas de austeridade que se intensifica nos últimos cinco anos. Em 2016, uma emenda constitucional (EC 95/2016) foi aprovada impondo um teto para gastos sociais até 2036, uma sinalização a investidores e ao mercado financeiros de que seus interesses estavam salvaguardados. Esse teto de gastos, que foi extremamente criticado nacional e internacionalmente, permanece em disputa. Em meio à pandemia, uma coalizão da sociedade civil que inclui o Inesc, protocolou um apelo público junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), mostrando a necessidade imediata da suspensão dessas medidas a fim de que o Estado brasileiro possa enfrentar a COVID-19 e seus impactos de forma apropriada.
Pobreza e desigualdade são questões estruturais e responder a elas requer ações políticas, incluindo a coragem de movimentar recursos e financiar polÍticas que possam corrigir injustiças históricas. A pandemia nos mostrou que é possível modificar cadeias produtivas e interromper rotinas que não pareciam ser possíveis de serem interrompidas. Os protestos nos EUA e em outras partes do mundo estão nos mostrando que as forças policiais podem ser desfeitas caso estejam prejudicando as comunidades que deveriam servir.
Não há nada que nos impeça de alcançar propostas orçamentárias que respondam de forma integral às opressões presentes e que refaçam nossos tecidos sociais para que possamos atravessar essa e outras crises, mas garantindo que ninguém fique para trás.